Solstício aqui
 



Cronicas

Solstício aqui

Cida Piussi


Não se tem mais invernos como antigamente. Comum ouvirmos isso, mas somente quem já passou dos "enta" tem a noção exata do que significa. Há ainda a definição temporal da mudança das estações; no hemisfério sul, o inverno inicia no dia 21 de junho, quando se tem o dia mais curto do ano e, consequentemente, a noite mais longa. Da mesma forma que em 21 de dezembro se tem (teria) o dia mais longo e, bem, já se deduz o que significa.

Nenhuma explicação astronômica e/ou astrológica faz diferença quando se trata do frio que nos visita anualmente. Se eu pudesse, iria sempre para o lado do mundo que o mantivesse longe de mim. Ao mesmo tempo que desejo fugir dessa estação climática, memórias vêm, fortes, e trazem lembranças que são difíceis de serem descritas em sua totalidade.

Nasci no estado mais frio deste país, num lugar que nem sequer consta no mapa, Linha Teutônia (não confundir com a cidade), e em uma época em que as estações eram bem definidas: não havia, ou não se tinha conhecimento do tal buraco de ozônio, das geleiras derretendo, etc. O que se sabia é que no inverno o frio seria uma constante e não o friozinho dos últimos tempos em que temos dias gelados, seguidos de dias mais ou menos, seguidos de calor. Assim, vamos para a cama sem saber se, ao acordar, teremos que tirar as peles do cabide para poder aquecer a nossa.

Sou filha de professores e morávamos na escola onde lecionavam. Meu pai era Orientador Rural e minha mãe lecionava desde a alfabetização até o quinto ano do ensino primário. Fui aluna dos dois. No primário, minha mãe, ginasial, meu pai.

Não gosto do inverno, mas os da minha infância tiveram um sabor especial. Nas casas não havia luz elétrica, fogão a gás, água encanada, nenhum conforto que, para nós, hoje, é indispensável. As luzes das velas, dos lampiões, dos fogareiros, por mais esforço que fizessem, não chegariam aos pés de uma lâmpada incandescente de 25 w.

O fogão a lenha era o equipamento mais importante. A primeira pessoa a pular da cama era a responsável por abastecê-lo e acendê-lo. Por motivos óbvios, a incumbência caía sobre alguém mais velho; crianças são impulsivas, desastradas, e as queimaduras não fariam o inverno ser menos rigoroso. O cheiro da lenha queimando entrava em meu nariz e com ele se misturavam o perfume do café recém passado, o do leite, que às vezes (muitas vezes), fervia e transbordava, se esparramando sobre a chapa de ferro, na sequência, o primeiro palavrão do dia… Os dias, sem nenhum exagero, iniciavam e terminavam ao redor do fogão.

No interior, a igreja e a escola eram os locais onde a comunidade se fazia presente. A festa junina, no dia 24, era o evento mais esperado do ano e a escola, bem, a minha casa, era o local onde tudo acontecia.

Na noite gelada da festa de São João, a fogueira, montada no centro do pátio da escola, iluminava a vila inteira e nós, os foliões, ficávamos à sua volta até que a última brasa se despedisse com um ar de "até o ano que vem". Vestindo trajes gauchescos ou à moda caipira éramos os donos da noite.

Da tradição caipira, o casamento na roça; da tradição recebida dos descendentes de imigrantes teutões (origem do nome Linha Teutônia), o Pau de Fitas; dos Jesuítas, pular a fogueira e pedir a proteção dos santos para não queimar os pés ao passar sobre as brasas quando a fogueira estava prestes a se apagar; as tradições eram cultuadas.

Não esqueço das comidas típicas, como o pinhão, o amendoim, a batata-doce... No entanto, o ápice da festa era a bebida proibida; o álcool, vindo de enormes panelas onde o vinho tinha estado cozinhando o dia inteiro seria liberado para a pirralhada e daria à noite um prazer inimaginável: o quentão para amainar o frio que, realmente, não sentíamos.


Cida Piussi fez graduação em Letras/UFRGS. Pós-Graduações em L. Portuguesa/FAPA e Práxis da Criação Literária/UniRitter. Formação em teatro - SITORNE-SSA/BA. Publicações nos sites Recanto das Letras, Usina de Letras, Universo de Cida Piussi e de outros autores. Participação em "Antologia Poética" e "Ditos e Feitos" da Ed. Recanto das Letras. Participa do Curso Online de Formação de Escritores

 

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